Português: URUBU CALÇOLA


                       
URUBU CALÇOLA  – Uma Fábula

                                                                        Por Dulce Martins

                                                                                          Direitos Autorais (2010)
                                                                  
                                                                  Ilustrações: Nilton C. Souza

                 
            UM PARTO DIFÍCIL – 1
   Era uma vez um urubu alto; não tinha crista de rei, mas era bem mais alto do que a maioria dos urubus do seu bando.
       Desde que nascera era um problema para seus pais: um parto difícil, ovo razoalmente grande, fazendo com que a mãe necessitasse alguns pontos.
       Ao quebrar a casca com os pés, já demonstrava que não seria igual aos demais do seu bando. Os olhares paternos eram de ternura e cheios de felicidade, porém uma felicidade preocupante.
       ‘Diferente o jeitinho dele nascer, não é, ó meu bem?’ comenta o pai, estranhando.
       ‘Parecia que as pernas dele já não cabiam mais dentro da casca...’nota a mãe.
       O doutor que assistiu o parto e viu o modo como ele nasceu, recomendou: ‘É melhor levá-lo a um ortopedista!’
       Depois de sucessivas de idas e vindas aos ortopedistas, contatou-se que Urubulino Costa de Medeiros era alto mesmo!

          COMPLICAÇÕES NA ESCOLA - 2

       Um urubu alto, tão mais alto que a maioria! Quem diria! Na escola os primeiros problemas: Para o pré era alto demais; perto dos outros urubuzinhos, com aqueles pés de dedos longos e abertos, corpo desajeitado, numa viradinha inocente, plaft! Pluft! Quebrava todos os brinquedos. (É claro, que sem querer.) Os professores reclamavam em todas as reuniões de pais e mestres, e os coleguinhas tinham medo dele. 
       É melhor colocá-lo numa outra escola com os grandes!’ Insistia a professora. Mas a mãe sabia que  a cabecinha do Urubulino não estava preparada para  alfabetização mais adiantada.
       Resignada, a mãe leva o problema para a escola de 1º grau, onde a diretora, muito compreensiva, aceita a matrícula de Urubulino.
       1º dia de aula: lancheira atravessada no pescoço, pasta debaixo das asas, olhos brilhantes, abraça a mãe, que hesitante leva o filho à escola.
       Recomendações: ‘Não brigue; não ligue se falam dos seus pés ou coxas. Tudo em você é lindo. A mamãe e o papai se orgulham muito de você!’
       ‘Dentro da lancheira tem a carninha que seu pai achou no lixão. Come tudo!’
       ‘Agora você tem que comer como os urubus de sua nova escola. Eles não podem perceber que você é muito jovem para esta escola.’ Hesitações e outras recomendações à parte. Urubulino não estava nem aí! O que ele queria era entrar logo e ver seus novos colegas, que pareciam pelo menos ser do seu tamanho.
       Já na escola, Urubulino logo descobriu que não ia ser fácil! Eram tantos os alunos para uma só professora. Chamá-la era difícil... e nem podia chamá-la de ‘tia.’ Quando ele estava no ‘pro-fes-....’ ela já estava atendendo outro aluno. E para enxergá-la de longe? Uma nova constatação: a mãe é chamada na escola (nessas coisas o pai quase nunca está presente para resolver):
       ‘Seu filhote precisa de óculos!’
       ‘Óculos!?’ Exclama a mãe.
‘Sim, óculos.’ Replica a professora e acrescenta: 'E seu filho e lento.'   

ADOLESCÊNCIA ANGUSTIANTE - 3

O crescimento para ele não foi fácil. Chegou à adolescência mais rápido que todos de sua idade; não obviamente por sua precocidade, mas por causa do seu ‘tamanho’. E que horror! Faltavam-lhe penas nas coxas, e isto realmente era um problema, um motivo de deboche.
Entre outros fatos, este era o que mais lhe causava dor. Ser obrigado a frequentar as rodas dos adolescentes, voando pra lá e pra cá nos depósitos de lixo da cidade, e em cada lugar, ser notado não só pela sua altura, mas também...
‘Por que você não tem penas nas coxas?’
‘É mal de nascença?’
‘Te depilaram, ó meu?’
‘Que pernas lindas você tem!’
Quanta gozação! E isto para um urubu garoto, que nem era adolescente ainda, era demais... Sem falar do frio que sentia quando voava. Parecia que as coxas iam partir-se ao meio.
Quando era verão, tudo bem, mas quando chegava o inverno, ficava tudo roxo e doído.
‘Tá usando meia fina? Gostei da cor!’
E as garotas? Nem é bom falar sobre elas! Às vezes até olhavam para ele, mas parecia que o faziam do mesmo modo como olhavam os outros urubus jovens... Ele sentia uma certa crítica!
Mas uma coisa não faltou para o Urubulino: o amor de seus pais. Para eles, aquele único filho era tudo: seu orgulho. Quase repetiu pela terceira vez a 2ª série, mas não tinha importância... Ele era a íris dos olhos da mamãe e do papai.
Um dia ele iriam crescer, ou melhor dizendo, parar de crescer; se enturmaria e finalmente, encontraria uma amável urubua; casar-se-ia e teriam muitos filhotes, que com um pouco de sorte seriam normais. Daí por diante, tudo continuaria como sempre foi. Este era o sonho da mãe, esperançosa pela sorte do filho!

AFUNDANDO-SE NOS LIVROS - 4

Urubulino sabia que era diferente; não precisava de espelho. A sociedade constantemente apontava para essas diferenças.
Isso acabou por tornar nosso amiguinho um tanto depressivo. Começou a afastar-se do bando, ficando cada vez mais longe das conversas, gritos de ‘Achei!... Achei!’ que o divertia tanto.
Começou a ler. Afundou-se nos livros, mas um em especial tocou-lhe o coração.
Podem adivinhar qual livro? Sim, este mesmo. O que falava de uma gaivota – seu ídolo! Que coragem! Como tinha a ver com ele! Porém, não tinha a ver totalmente. Ele não tinha interesse em rasantes; em atingir grandes alturas, ou em vôo livre. O que lhe chamou atenção, no entanto, é que a gaivota tinha um objetivo, que podia ser estranho para os outros, mas ela sabia por si mesmo o que queria fazer e o que desejava alcançar!
Urubulino, porém, não tinha um objetivo assim; ou mesmo qualquer outro que o motivasse a viver com qualidade.
Pensou e repensou no que a sua existência poderia fazer diferença neste mundão.
Seria só comer carniça e restos de animais? Rebuscar o lixo ao lado daqueles seres chamados ‘humanos’, que nem chegavam perto da carne que os urubus gostam tanto e em nada semelhante? Ficam pegando aquelas coisas que só machucam os bicos. Lembrou-se que outro dia, um urubu jovem ao seu lado, rebuscando o lixo, pisou num frasco cheio de uma substância ácida que lhe queimou os pés, fazendo-os quase desaparecer. Gritou tanto o coitadinho, mas urubu nenhum pôde socorrer, e Urubulino também não sabia o que fazer para ajudar!
Por que será que todos os dias aqueles monstros que fazem tanto barulho, despejam esse monte de coisas, com tanta comida para nós? E tanta bugiganga que aquela gente cata o dia inteiro todos os dias? O próprio Urubulino já tinha pisado em agulhas, cacos de vidro, latas velhas que cortam, etc.
Na escola ele tinha aprendido que existiam países que separavam o lixo e que nas cidades não havia locais assim com essa abundância de víveres, e que nós eramos tão privilegiados, pois os urubus daqueles países tinham que viver na floresta à caça de resto de animais deixados pelos outros.
Urubulino, nesta aula especial, ficara fascinado! Quase saíu-lhe um grito: ‘Eu gostaria de visitar um país assim!’ Mas como iria confessar que até o lixo lhe parecia feio? Ele sentia no “intimo” que não era para isso que ele nascera. E aquele mal-cheiro. Oh! Que cheiro desagradável!
Sendo ele tratado como diferente, imaginem se abrisse o bico para falar de seus sentimentos sobre o modo de vida da sua espécie. Porém, não conseguia sentir-se grato ou mesmo feliz.
Pensamentos, pensamentos... por fim decidiu-se: Comunicou aos seus pais que iria viajar, conhecer outros de sua espécie; quem sabe, outros países.
Os pais hesitaram: ‘Mas, filho...’
‘Não adianta! Eu preciso ir! Eu vou!’
Com o livro da gaivota na bagagem, lá se foi o nosso inconformado e diferente amiguinho Urubulino!

   EM BUSCA DE UM NOVO MUNDO - 5

Logo saíu dos limites da cidade, deixando para trás lágrimas nos olhos da mãe e do pai, e a estranheza dos vizinhos. Urubulino começou então a sentir um ar delicioso. Pela primeira vez sentira um cheiro diferente e agradável, que lhe entrava narinas a dentro e parecia limpar-lhe a alma.
E o verde! Que exuberância! Quantas árvores para pousar! Podia escolher qualquer uma. No caminho inúmeras outras aves lhe acenavam. Parecia ser um mundo diferente e começou a pensar em seus pais naquele lugar, porém, eles estavam presos naquela imundície. Nunca tiveram coragem de sair de lá. Pela primeira vez sentiu dentro de si um certo poder. O que seria aquele sentimento que fazia seu coração bater tão forte? E já não ouvia: ‘Suas coxas peladas, sua altura, ou como você é engraçado de óculos!’ O que ele ouvia eram o simples ‘zum, zum’ do vento, o ‘chuá, chuá’ das árvores, os pássaros cantando e muita, muita paz!
Seria ali o paraíso? Mas os urubus só vão para o paraíso depois que morrem e eles pensam que o paraíso é um lugar igual àquele em que eles vivem. Se isso fosse mesmo verdade, ele não queria ir para aquele lugar igual ao que tinha sido criado, mas sim naquele novo lugar, livre e cheio de vida.
Depois, aconteceu o que era de se esperar. Urubulino começou a sentir aquela dorzinha no estômago, indicando que era hora de se alimentar. Mas e agora? O jeito era, pensou Urubulino, descer à terra e procurar alimento.
Vôos baixos, olhos aguçados, todos os sentidos voltados à sobrevivência: Comida, comida; era o que pensava. O tempo foi passando e nada. Quase começou a ter saudades de casa, onde tudo era tão fácil. Mas resistiu! Depois de ter experimentado o novo cheiro do mundo, visto o verde, aquela sensação no peito... Não, não poderia voltar atrás.
Era só uma questão de tempo. Era preciso ter disciplina, controle sobre si mesmo. Procurou concentrar-se mais, olhando mais aguçadamente. De repente, avistou algo lá embaixo em uma clareira. Eram restos de algum animal.  Desceu rápido, comeu e se fartou. Depois de satisfeito, olhou ao redor e sentiu-se pleno e satisfeito.
Quando planejava voltar a voar, foi interrompido por outro urubu que também desceu ali.
Logo que pousou, o urubu observou: ‘Ei, amigo, quase não deixou nada para mim, hein?’
Urubulino arguiu: ‘Mas ainda tem carne; dá pra matar um pouco a fome.”
O recém-chegado urubu começou a comer, e não perguntou seu nome, e nem mesmo comentou sobre sua altura, ou suas coxas sem penas! (Observou Urubulino.)
Intrigado com aquele urubu tão diferente dos outros que havia conhecido, aguardou para que terminasse de comer as sobras, a fim de conhecer melhor aquele que poderia ‘quem sabe?’ ser um amigo! Coisa que nunca soubera como era.
Quando terminou, o visitante ainda em meio a mastigos, disse: ‘Bem, deu para satisfazer a fome! Meu nome é Urubalfa... Sou meio esotérico e tenho muito prazer em conhecê-lo! Você vem de onde?’
Quantas perguntas! O que seria esotérico? E que nome estranho...
‘Por que URUBALFA?’ Ousou perguntar Urubulino.
Foi respondido: ‘É que sempre estou em alfa!’
‘Alfa?’ Indagou Urubulino.
O visitante, não ligando para a estranheza de Urubulino, continuava as suas perguntas, e parecia estar interessado em respostas.
‘O que você está fazendo aqui nesta floresta? Você não é daqui!’
‘’Observou bem!’ Respondeu Urubulino. ‘Vim da cidade. É minha primeira experiência fora de casa.’
‘Pelo jeito, deve ter tido problemas! Os urubus da cidade acham que perdem seu tempo vindo para o campo. Acham difícil a vida aqui.’
‘De fato não parece fácil!’ disse Urubulino, ajeitando os óculos.
‘Você precisa mesmo de óculos?’
‘Na verdade não sei. A professora do 1º grau disse que sim... Então eu uso!’
‘Ah, mas fale –me dos motivos que o trouxeram para a floresta? Disse o visitante.
‘Bem, eu tive uma infância difícil...’
Urubulino mal acreditava no que estava acontecendo. Estava conversando com outro urubu com mais do que quatro palavras! É lógico que conversava com seus pais, mas também eram os únicos, e tampouco sentia-se à vontade para abrir-se totalmente. Mas aquele ‘amigo’, sim ‘amigo’, queria ouvi-lo e saber sobre sua vida...

ATINGINDO AUTO-CONFIANÇA – 6

Pousando num galho de uma frondosa árvore, puseram-se a conversar.
Urubulino abriu-se. Falou de seus medos, dos preconceitos que enfrentara, de sua aparência, de seus desejos e do seu grande amor platônico: Gilda! Que urubua!
O pai de Gilda detinha o controle da parte oeste do lixão. Tinha crista de Rei. Chegar lá perto... ‘um sonho!; Ele via Gilda voar de forma deslumbrante, com penas negras e limpas, que chegavam a azular sob os reflexos do sol. Mas o pai era uma fera! Justo por ele havia se apaixonado! Sem penas nas coxas, alto demais e usando óculos – realmente um sonho impossível!
Algumas vezes até que ela o havia notado, mas parece que o que sentia foi pena ou piedade.
Depois de horas conversando, Urubalfa não teve dúvidas; estava diante de alguém que precisava de ajuda.
A existência às vezes parece nos pregar peças, nas quais desempenhamos um papel nem sempre elogiado pelos críticos.
Urubalfa sabia que o sentimento de inferioridade impedia nosso Urubulino de atingir todo o seu potencial e resolveu intervir: ‘Pois é, meu caro amigo, seu problema é falta de auto-aceitação!
‘Auto-aceitação? Sim, mas não é fácil! Você fala porque não é tão alto e não tem coxas sem penas!’
‘Isto o torna realmente diferente?’ Perguntou Urubalfa.
‘Por fora eu sou diferente!’ Exclamou Urubulino.
‘Mas por fora todos o somos. Semelhantes, mas diferentes!’ Replicou Urubalfa e continuou: ‘O problema é como tratamos essas diferenças. Se encontramos algo diferente em nós, lá dentro ou aqui fora (falou apontando o corpo), essa diferença tem que ser considerada boa para nós, e não má, um peso, ou algo terrível de carregarmos. É certo que em determinados casos é necessário mudança, mas não é esse o seu caso, meu caro!’
‘Então eu tenho que gostar de ser como eu sou? Ninguém gosta de como eu sou e acho que incomodo os outros.’
‘Ora, você não incomoda. Você existe! Todos nós que nascemos, merecemos um espaço, e ele nos pertence por direito divino e não pode ser ocupado por ninguém, mesmo que esse alguém carregue sobre si o preconceito de que é melhor do que nós.
‘Amigo, (essa palavra soava-lhe muito doce...) suas palavras soam bem. Nunca ninguém me disse essas coisas antes.’
‘Ora! Não era o momento, tudo tem uma hora certa e o Universo está atento, e bem lá dentro de você tudo estava querendo explodir. Você não é como muitos que se consideram o máximo, dizendo que não está faltando nada, quando em muitos casos falta muito.
Urubulino pensava na Gilda, agora muito mais vivido e preparado. Quem sabe ela não o veria com olhos diferentes e com mais atenção; afinal, ele tinha muitas coisas para contar-lhe...
Urubalfa continuou: ‘Você não sabia como, mas acabou por mover você e trazê-lo até aqui! Se você observar bem, poderá ver que seu desejo se realizou!’
‘Meu desejo...’ Sussurrou Urubulino. ‘Sim..., sim..., Concordou Urubulino. ‘Eu sempre desejei ser aceito, conversar sobre o que sinto, rir sem medo, não ter que pedir desculpas por ser como eu sou. Eu me sinto leve agora!’
Nosso amiguinho estava no auge, quase explodindo. Gritava alto. Resolveu voar e voar.
Urubalfa olhava para ele lá de baixo com um sorriso e no peito a sensação de que havia ajudado um novo Urubulino a nascer! 
Ficaram juntos por um longo tempo. Passaram horas conversando, voando, caçando...
Urubulino descobriu as delícias da floresta. Aprendeu a comer frutas. Não comia mais que o necessário. Conheceu outros urubus e bem certo é que o pessoal que mora no campo são sempre mais simples e amigaveis.
Mas a saudade dos pais começou a bater forte. Parecia egoísmo saber tudo aquilo e não compartilhar com eles. Gostaria de poder convencê-los a vir com ele, conhecer seus novos amigos e ter um tipo de vida especial.
Tinha que voltar; pelo menos para dar uma satisfação, explicar o que houve, suas aventuras, e quem sabe eles também não estariam preocupados... Além do mais, sentia-se  mais forte e determinado.
Dentro de si, tudo se havia resolvido, exceto a falta de penas nas coxas. Não era coisa fácil de se aceitar; e também tinha o problema do frio quando o inverno chegava... e o inverno estava se aproximando.

 O RETORNO AO LAR ANTIGO - 7

Despediu-se de seus novos amigos e seguiu rumo de volta à cidade. Peito cheio de coisas para contar, compartilhar... Não iria esperar que lhe perguntassem, mas iria falar-lhes, quisessem ou não ouvir.
Com certeza seus vizinhos iriam morrer de inveja quando soubessem de tudo o que viveu e aprendeu, pois agora ele era um caçador e não mais um comedor de restos do lixo!
E assim voando e pensando, avistou num descampado, lá no chão, algo estranho de um colorido que lhe chamou a atenção. Ajeitou os óculos e resolveu descer. Pousou... Era um calção listrado de verde e amarelo. O frio estava de fato incomodando. Olhou para o calção ou calçola, aproximou-se, e enfiou as pernas nele. Subiu-o até à cintura e foi notável; cobria-lhe as coxas! Procurou algo com que o pudesse amarrar e achou uma cordinha fina. Fez um laço com seu bico e do seu jeito, e imaginou-se o máximo!

              UMA IDÉIA ERRÔNEA – 8

Voou baixo para ver se não atrapalhava seu vôo, e não atrapalhava! Era quentinha! Enquanto divertiu-se experimentando a calçola, avistou um “ser humano” diante de uma mesa ao lado de uma humilde casa e uma bacia de água, da qual saía bastante fumaça, e dentro dela, ‘oh, que horror!’ O homem estava depenando um urubu! A pobre cabeça pendia para o lado. Estava mortinho. Constatou Urubulino e ficou estarrecido: ‘Não é possível!’
Ficou ali por perto, procurando não ser visto. Queria saber o que aquele “ser humano” iria fazer com aquele pobre urubu, do qual arrancava as penas sem dó.
O pobre Urubulino pensou: ‘Será que tinha filhotes? Oh, pobrezinhos!’ Quase teve o ímpeto de ir atacar aquele homem, pois ele arrancava as penas, e como lhe parecia, com muita violência!
O homem limpou bem o urubu, passou tempero, e na fogueira do quintal, colocou-o para assar.
Urubulino ficou ali. Queria ver tudo o que aconteceria. Depois de assado, o urubu ficou pronto. O homem retirou-o do fogo e começou a comê-lo com sua família.
Os olhos de Urubulino quase saltaram; seu coração quase parou; a respiração ficou difícil.
Não aguentava mais ficar ali; e também não podia fazer mais nada... Os seres humanos agora estavam comendo urubus, concluíu.
‘Meus pais!’ (Lembrou-se, assustado.) ‘Preciso salvá-los!’
De repente surgiu a associação: ‘Então era isso!!! Aquele lixo todo de graça, por nada, e eles ali perto da gente, nos espreitando, nos engordando, para voarmos bem baixo e nos pegarem mais facilmente!’ Tudo combinava... ‘Oh, pobre mãezinha, paizinho e Gildinha!!! Será que já os teriam comido?’
Voou alto e rápido, vestido de sua calçola, num vôo desesperado. O seu mundo estava em suas mãos e não poderia falhar agora. Tinha que agir rápido!

O TERRÍVEL MAL-ENTENDIDO – 9

Quando avistou ao longe o depósito de lixo no qual havia passado sua tão dolorosa infância, ele já queria falar... Gritava. Todos olharam para cima. Alguns vieram ao seu encontro, mas ficaram sem entender nada.
Nosso amiguinho gritava: ‘Cuidado! Os seres humanos estão comendo urubus! Isto aqui é uma armadilha. Vão comer a todos!Pai, mãe, onde estão?
Seus pais, já meio velhos e um pouco lentos, mal acreditavam no que viam e ouviam.
Seu filho querido voltara... Mas o que era aquilo nele? Que cores eram aquelas? Calças???
Levando a mão à testa, o pai exclamou: ‘Nosso filho de calçola!’ A mãe, de coração alegre, concluíu: ‘Não tem importância! Ele está de volta!’
Descendo até o campo foi imediatamente rodeado pelo bando. Urubulino estava ofegante; queria dizer tudo de uma só vez
Abraçou os pais, mas eles não tiravam os olhos da calçola.
O pai arriscou, interrompendo Urubulino em seus apelos: ‘Filho, porque está usando essa calçola?’
‘CALÇOLA???’ O riso foi geral: ‘Urubulino voltou, mas voltou de calçola!!! Isto é demais! Ha, ha, ha!!!’
‘Pai, mãe, conheci muita coisa linda na floresta! Mas não há tempo! Vamos embora daqui! Os seres humanos só estão nos espreitando. Vão comer a todos nós!
Risadas, gritos... Ele mal conseguia fazer-se ouvir.
Então ficou nervoso. Voou direto para cima, e a calçola ‘Plaft! Plaft!’ batendo ao vento. Logo se ouviu a ovação do bando todo. Nunca haviam visto um urubu de calças. Era por demais engraçado!
Até o pessoal da banda do oeste apareceu para ver, e entre eles, Gilda, que estava intrigada...
‘Olha um urubu de calçola!’ Ecoava no ar.
Lá de cima, Urubulino ainda gritava: ‘Ouçam-me! Vamos embora daqui. Isto é uma armadilha!’
Mas ninguém lhe deu atenção. Até seus pais balançavam a cabeça, desconsolados com a atitude do filho, e retiraram-se cabisbaixos para o seu ninho.
Essa foi uma grande decepção para Urubulino. Inconformado, completamente incompreendido, deu meia volta numa rasante espetacular. O frio cortava, e de repente o barbante derramarou-se, soltando a calçola, que saindo das pernas de Urubulino, deixou a descoberto suas coxas sem penas, que em pouquíssimo tempo ficaram roxas por causa do frio.
Urubulino apavorou-se pela perda da calçola. Olhou para trás, esquecendo-se da rasante. Estava perdendo altitude, preocupado com a perda da calçola que lhe protegia. E foi tudo tão rápido, que acabou por esborrachar no chão.
‘AH!!!’ Houve um grito geral! O bando não acreditava. Seus pais ouviram a notícia: ‘Urubulino se matou!’
Voaram para o local. Nada mais poderia ser feito... Óculos quebrados, rosto sangrando... Só um último suspiro e um olhar que não podia dizer mais nada.
Gilda apoiou-o nas suas asas Morreu ali mesmo, no meio do lixo, nos ‘braços’ da mais cobiçada urubua do bando.
Sua mãe desmaiou. O pai teve que socorrê-la.
Ninguém tinha entendido o que, ou melhor, o porquê do ocorrido.    

 SERÁ QUE HOUVE FINAL FELIZ? - 10

Quando Gilda levantou os olhos para contemplar o céu, adivinhe o que ela viu. Era a calçola do Urubulino ainda pairando no ar. Finalmente, caiu vagarosamente no chão, a apenas uma curta distância de onde eles estavam.
       Gilda pensou em buscá-la para vestir o Urubulino. Para sua surpresa, naquele exato momento, ela viu que uma das asas do Urubulino se mover. Então ela percebeu que a outra asa também se mexeu.
       ‘Seria possível que Urubulino tivesse somente desmaiado e ainda estivesse vivo?’ Gilda pensou. Ela mal podia acreditar e ansiosamente implorou: ‘Urubulino, Urubulino. Acorde! acorde!’
       ‘Ah, ai! Minha cabeça! O que aconteceu?’ Urubulino gemeu.
       ‘Urubulino, não se mova! Você bateu a cabeça violentamente no chão quando estava mergulhando. Como é que você ainda está vivo?’ Gilda perguntou em descrença pelo que havia visto.
       ‘Gilda, diga-me o que realmente aconteceu? Eu me lembro que eu estava tentando...’ ele parou por um momento.
       ‘O que?’ Gilda queria saber, mas primeiro tentou acalmá-lo e então ajudou-o a lembrar-se: ‘Você estava desesperadamente tentando convencer a todos para sairem deste lugar. Você mencionou que os humanos agora estão matando e comendo os urubus, e que você tinha encontrado um lugar para nos fazer livres. O que você realmente queria dizer?’
       ‘Sim, é isso! Eu me lembro de tudo agora... Mas por que eles não acreditaram em mim?’
       ‘Talvez você estivesse enganado.’ Ela disse.
       ‘O que? Você também? Você não acredita em mim, Gilda?’
       ‘Oh, esse não é o caso. Eu acho que você disse algo que é impossivel de acontecer. Os humanos nunca comeram urubus antes. Você também mencionou uma cena terrível que você viu no descampado e que fez você vir aqui correndo nos avisar para sair do lixão. Você me levaria ao lugar da cena, a fim de que juntos pudéssemos descobrir o que realmente aconteceu? Talvez eu pudesse ajudá-lo...’
       ‘Sim, claro; eu levo. Será um prazer!’ Ele respondeu,
       ‘Urubulino, conte-me mais sobre o lugar que você foi em primeiro lugar.’ Gilda estava interessada em saber.
       ‘A floresta?’ Urubulino queria entender a pergunta.
       ‘Sim. Exatamente!’ Gilda afirmou.
       Urubulino estava feliz que Gilda estava interessada em saber sobre isso e continuou: ‘’É fantástico! Não mais lixão, não mais zombaria, não mais implicação de como você é... Um monte de amigos...’
       ‘Posso voar com você até lá mais tarde?’ Gilda pediu.
       ‘É claro que você pode!’ Urubulino respondeu e Gilda continuou: ‘Urubulino, eu também acho que este lugar não tem nada a ver comigo. Não aguento mais este mal-cheiro.’
       Urubulino acrescentou alegremente: Gilda, você vai amar aquele lugar! Você vai apreciar as lindas árvores frondosas, a brisa, o perfume das flores...’
       Urubulino mal podia acreditar no que estava acontecendo. Isto era verdade ou ele estava sonhando? Não, era um sonho realizado! Ele estava falando livremente com a filha do Rei e ela também parecia muito interessada nele e nas suas experiências...
       ‘Você acha que pode voar agora?’ Gilda perguntou com um certo receio, devido às suas machucaduras.
       ‘Eu acho que posso voar sem problemas. Você viu meus óculos?’ Urubulino indagou.               ‘Óculos? Eles estão totalmente quebrados.’ Gilda respondeu.
       ‘Oh, como é que eu vou enxergar sem eles?’ Ele questionou.
       ‘Talvez você não precise deles mais!’ Ela replicou.    
       ‘Você pode ter razão, porque eu posso ver tudo perfeitamente bem.’
       Fitando bem os olhos ao redor, Urubulino viu sua calçola ali perto. Olhando no olhos de Gilda, perguntou: ‘Será que eu deveria continuar usando...?’
       Sorrindo, Gilda timidamente respondeu: ‘Não vejo porque não! Voce parecia tão elegante com ela! E subitamente mudou de assunto, dizendo: ‘Urubulino, Não que eu não esteja feliz, mas estou espantada com o fato de que você miraculosamente sobreviveu.
       Enquanto Urubulino estava vestindo a calçola, ela examinou o chão onde Urubulino tinha caído. Ela descobriu que ele tinha caído bem em cima de um grosso pedaço de colchão de espuma coberto de pó, o que tornou possível salvar sua vida...
       De mãos dadas, ou melhor, de asa tocando asa, eles voaram para bem longe. Primeiro para o local onde Urubulino havia visto o homem matar o urubu.
       Eles examinaram as penas que tinham sido arrancadas. Então finalmente concluíram que as penas eram realmente de galinha preta que o homem havia matado para comer – não um urubu! Ambos caíram na gargalhada sobre sua conclusão errônea anterior.
       De ‘mãos’ dadas novamente, eles voaram pelo céu azul até chegarem à floresta.
       Lá, o nosso Urubu Calçola e sua querida Gilda conheceram e amaram a floresta e  decidiram viver ali em felicidade... para sempre!!!


                            DEDICAÇÃO

Dedico este livro a todas as crianças e povos do mundo, bem como aos meus filhos e netos...

Agradeço em especial ao meu marido, José, pelo seu amor, companheirismo, e apoio na escrita desse e de outros livros que já escrevi e ainda vou escrever! Estendo agradecimento especial ao ilustrador Nilton Cesar Souza, e à minha sobrinha, Bianca Barbetta, pelo trabalho genial na confecção deste blog.

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    (Em breve, outros livros estarão disponíveis em inglês, português e outras línguas...)